Contos

Cabra-cega

Marcelo Spalding


O lápis encosta na folha branca, amassada, amarrotada, um tanto úmida, mas ainda branca. Lápis de grafite negro, de base comida, o negro do grafite deslizando na superfície machucada da folha. Ali caberiam sonhos, projetos, desejos. Maria poderia, com o negro do grafite e o branco da folha, amenizar o sofrimento da filha, dar-lhe conselhos, confessar seus crimes, protegê-la de seus próprios erros. Maria poderia apelar para algum antigo cliente, um vizinho, alguém haveria de acreditar nela e procurar um bom advogado, quem sabe até amenizar aquele sofrimento todo. Maria poderia contar de suas colegas de cela, as ameaças, as brigas, as noites insones à espera da primeira unhada, do primeiro abuso.

Mãe (estranho chamar você assim), prometi para o pai e para a vó que nunca ia te escrever, nunca mesmo. Mas desde que segurei o primeiro lápis e numa folha colorida escrevi meu nome, nosso nome, sempre esperei por este dia, o dia em que poderia escrever tudo o que ficou entalado aqui, tudo o que devia ter dito nas visitas que nunca te fiz. Por que, mãe, por quê? Porque se meter com essa gente, nos abandonar assim? O pai sofreu tanto! Tivemos de sair da cidade, disso você deve saber. E a cada um ou dois anos mudamos de lugar para não nos acharem. O pai tinha muito medo. Eu, nem tanto, perdi quem poderia ter me dado uma infância, você, e com isso perdi a vontade de acreditar, levantar, partir, voltar, esperar. Não espero mais nada, mãe, não espero te perdoar um dia, ouvir tuas razões, mas também não posso acreditar nas do pai. Não, não posso...

Apertando forte o grafite negro, Maria aos poucos faz uma linha grossa, marcada, passeia com o lápis de um lado para o outro. Ela não tem a pretensão de transformar aquelas linhas em palavras, nem traços, simplesmente rabisca e lembra o dia que marcou sua vida para sempre. O olhar da pequena, ainda com cinco aninhos, de mochila nas costas para mais um dia de aula, o latido estridente do cão tentando espantar os homens, o sumiço repentino do marido, para nunca mais. Poderia escrever tudo isso, mas Maria não teve a chance de aprender a escrever, nem tempo de aprender a ler.

Você não estava aqui pra ver meus primeiros cadernos, pra me ajudar na primeira menstruação nem pra conhecer meu primeiro namorado. Mas sabe, mãe, talvez tenha sido melhor a gente viver separada, assim eu vou pra sempre pensar que você é melhor do que realmente é. Posso imaginar que a prisão foi um erro, que você só piorou as coisas tentando fugir porque não aguentou ficar longe de mim, que o pai mentiu o tempo todo. Posso nos ver passeando de mãos dadas por um parque, você me ensinando o alfabeto, você me perguntando qual cor de batom eu prefiro. Nos sonhos a gente pode tanto...

Segura as páginas enviadas pela filha como se a pegasse no colo depois de anos. Pesam, e pesam mais que o bebê, mais que a menina deixada com o pai depois daquele dia. Preenche os espaços vazios das letras, faz um pingo no lugar do ponto do “i”, pinta com cuidado cada “o”, e finge que as letras são dela, as palavras são dela. Prefere assim, acredita que a sentença proferida por aquelas palavras seria mil vezes mais definitiva que a de qualquer juiz, tem certeza da condenação, da raiva que a menina sente pelos anos distantes. Aprendera a viver sem a filha, agora aprenderia a viver com suas folhas brancas manchadas pelo grafite negro, e as guardaria como tesouro.

O pai, você sabe, nunca foi um pai. E eu, nunca fui uma filha. Precisava de alguém para cuidar da casa, cozinhar, e outras coisas de homem. Homem é homem. Também nunca mais falava de você, aliás ele fala pouco, desconfiava dos vizinhos, da própria mãe, de mim. A vó morreu e não deixou saudades. Estivesse viva e eu não poderia escrever, não poderia te mandar essa carta como não pude mandar as outras tantas que escrevi desde os sete anos.

Um dia uma das colegas de cela perguntou o que estava escrito na carta. A resposta, simplória e inevitável, foi: não sei, não sei ler. A outra pegou o papel das mãos de Maria e com dificuldade leu a primeira linha, “mãe (estranho chamar você assim), prometi...”. Mas Maria gritava tanto, e tão alto, que logo vieram as monitoras e a confusão começou. Maria não queria que lessem a carta para ela, não queria saber o que estava escrito, tinha medo de cada uma daquelas letras, medo e fascínio. Talvez adivinhasse o final que a filha reservara para ambas.

Mas escrevo agora, mãe, para você saber que amanhã estaremos mais perto do que nunca. Sei que eu errei, sei que vou pagar caro, mas eu precisava me libertar, às vezes a prisão é nossa própria casa e as grades, nossos medos. Sempre tive medo de fugir e depois o pai me achar, me achar e depois me bater, me bater e depois... Sempre tive medo, e pensei em morrer, e pensei em matar. Agora, não mais. Agora está feito. E sei que mais cedo ou mais tarde, a gente vai se encontrar.

 

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